Polícia Federal afirma que indigenista e jornalista foram mortos apenas pelos irmãos Amarildo e Oseney de Oliveira; informação surge no dia em que Bolsonaro visita a Amazônia. Perícia confirma arcadas dentárias do jornalista britânico e do indigenista . Na imagem acima o superintendente da PF, delegado Eduardo Alexandre Fontes durante a coletiva de imprensa (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real/15/06/2022) .
Por Cícero Pedrosa Neto e Elaíze Farias , da Amazônia Real
Belém (PA) e Manaus (AM) – Numa reviravolta surpreendente, a Polícia Federal (PF) afirmou que os assassinos de Bruno Pereira e Dom Phillips foram apenas os irmãos Amarildo e Oseney de Oliveira. Numa nota seca, direta e sem detalhes, o órgão no Amazonas informou, nesta sexta-feira (17), que o duplo homicídio do jornalista britânico e do indigenista brasileiro não foi um crime de mando. “Os executores agiram sozinhos, não havendo mandante nem organização criminosa por trás do delito”, informou.
Sem efetuar mais nenhuma prisão, ao contrário do que havia informado dias atrás, e desdizendo as linhas de investigação sobre as quais as autoridades trabalhavam, a PF decidiu tornar pública essa informação no mesmo dia em que o presidente da República, Jair Bolsonaro, inicia mais uma viagem à Amazônia. A agenda prevê a participação em um evento religioso da Assembleia de Deus, em Belém, e uma motociata em Manaus, neste sábado (18).
Desde o desaparecimento da dupla, em 5 de junho, Bolsonaro (PL) vinha sendo criticado pela forma como tratou o caso. Primeiro, por demorar mais de 24 horas para permitir que as forças policiais atuassem. Depois, por tratar com desdém o trabalho dos desaparecidos, chamando de uma “aventura não recomendada” e, por último, até por dizer que Dom Phillips “era malvisto” por escrever reportagens contra garimpeiros.
Presos em Tabatinga, cidade vizinha a Atalaia do Norte (AM), os irmãos Amarildo, o “Pelado”, e Oseney de Oliveira, “Dos Santos”, são apontados agora pela PF como os únicos responsáveis pelas mortes, com requinte de crueldade, de Bruno Pereira e Dom Phillips.
A associação que reúne indígenas do Vale do Javari, a Univaja, protestou e disse que o indigenista e o jornalista foram vítimas de “crime político” e exigem que as investigações continuem. “A Univaja não concorda com o desfecho da Polícia Federal que afirma não haver mandante para o crime que culminou na morte de Dom e Bruno”, disse a Univaja, em nota.
Versões contraditórias
Entrevista coletiva das Forças de Segurança, em Manaus, para falar dos assassinatos de Bruno e Dom (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real) O que surpreende no desfecho dado pela PF é que ele contradiz as próprias falas do superintendente da PF, delegado Eduardo Alexandre Fontes, ao longo dos últimos dias. Em 8 de junho, ele levantou a hipótese de que o narcotráfico estaria relacionado ao desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips. “As investigações apuram o envolvimento de quadrilhas de tráfico de drogas na região. Estamos buscando saber se houve algum crime nesse desaparecimento”, disse na ocasião.
E acrescentou: “Vamos apurar eventual homicídio caso tenha ocorrido. Não descartamos nenhuma linha investigativa. Nós estamos na busca das pessoas, não só crimes apurados, mas busca de embarcações, de desaparecidos”, afirmou o delegado Fontes.
A PF não informou, até agora, quais as informações que teve para recuar da linha de investigação. Tampouco respondeu questões que ainda pairam sobre o caso, como a presença de uma terceira pessoa que, inclusive, teria atirado contra Bruno e Dom. Na confissão de “Pelado”, ele e o irmão cuidaram de ocultar a prova do crime, enterrando os corpos em uma área de igapó da bacia do rio Itacoaí.
Poucos indígenas que testemunharam os minutos finais de Dom Phillips e Bruno Pereira foram ouvidos pelos investigadores. Alguns deles sequer prestaram depoimento à PF, embora tenham estado com o jornalista e o indigenista até pouco momentos antes de serem mortos.
Na quarta-feira (15), em coletiva à imprensa transmitida por diversos canais de TV ao vivo, o delegado Eduardo Alexandre Fontes informou que a lancha utilizada por Dom e Bruno foi afundada propositalmente por “Pelado” e o irmão Oseney para impedir a investigação. Isso teria impedido a polícia de chegar rapidamente ao local do crime, já que a ocultação dos corpos ocorreu em uma região de difícil acesso, a 3,1 quilômetros de igapó, mata adentro. Segundo a PF, eles foram mortos a tiros , esfaqueados, queimados e enterrados. “Pelado” foi preso por porte de munição de uso restrito e drogas no dia 7 de junho.
Fontes disse que chegou a esse lugar, que fica na região entre as comunidades de Cachoeira e São Gabriel, onde moram os irmãos Oliveira, apenas após confissão de Amarildo, o “Pelado”. O outro irmão Oseney, o “Dos Santos”, negou a participação nos crimes. “Eles colocaram sacos de terras na embarcação para que ela pudesse ser afundada, tiraram o motor 40 HP e afundaram também”, disse o delegado.
Mas, no mesmo dia em que houve o anúncio do encontro dos restos mortais de Bruno e Dom, o superintendente da PF lembrou que o caso, dois dias atrás, estava na fase de “desvendar todos os autores” e também “a real motivação”.
Sobre como foram mortos Dom e Bruno, o superintendente da PF disse que “a perícia vai dizer a causa da morte e com que tipo de arma de fogo” eles foram executados. “Foi um embate, com disparo de arma de fogo”, cravou o delegado Alexandre Fontes ao responder uma pergunta da Amazônia Real durante a última coletiva à imprensa.
Denúncias anteriores
Manifestação em frente à sede da Funai no Vale do Javari (Foto: José Medeiros/Agência Pública) A Univaja publicou nota , nesta sexta-feira (17), dizendo que as informações que os indígenas forneceram às autoridades policiais foram desqualificadas. Desde o ano passado, quando a Equipe de Vigilância da Univaja (EVU) entrou em atividade, a PF, o Ministério Público Federal e a Fundação Nacional do Índio (Funai), vêm sendo informados sobre o suposto envolvimento de uma rede criminosa que conecta a caça e pesca ilegal — historicamente desempenhada na região — com o narcotráfico.
“Tais documentos apontam a existência de um grupo criminoso organizado atuando nas invasões constantes à Terra Indígena Vale do Javari, do qual Pelado e Dos Santos fazem parte”, afirma a nota. “Descrevemos nomes dos invasores, membros da organização criminosa, seus métodos de atuação, como entram e como saem da terra indígena, os ilícitos que levam, os tipos de embarcações que utilizam em suas atividades ilegais.”
Nos dois últimos dias, fontes novamente ouvidas pela Amazônia Real , e que informaram corretamente que Bruno e Dom haviam sido vítimas de uma emboscada e que “Pelado” era peça-chave do desaparecimento, voltaram a citar o nome de “Colômbia”, o traficante peruano Rubens Villar Coelho. Ele seria o mandante do duplo homicídio, e uma espécie de “patrão” do comércio ilegal no Vale do Javari.
“É ele que patrocina todos os pescadores dessa região. Já estavam se organizando para matar o Bruno. O mandante patrocina todos os pescadores dessa região, sobretudo em Benjamin Constant (município vizinho de Atalaia do Norte)”, informou uma dessas fontes. “Ele (Colômbia) não ia perder um monte de dinheiro. Com o Bruno sendo empecilho na vida dele, eles acharam que matando o Bruno, o movimento de fiscalização iria se acabar. Eles imaginavam dessa forma. Mas a tendência é ficar mais forte”, disse outra fonte.
A Univaja, que representa sete povos da Terra Indígena Vale do Javari contatados e ao menos 16 grupos em isolamento voluntário, localizada na tríplice fronteira do Brasil, Colômbia e Peru – países produtores de cocaína que é distribuída em solo brasileiro, afirma que “foi em razão disso que Bruno Pereira se tornou um dos alvos centrais desse grupo criminoso, assim como outros integrantes da Univaja que receberam ameaças de morte, inclusive, através de bilhetes anônimos”.
Investigação em curso
Buscas no rio Itacoaí, em Atalaia do Norte (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real) A lancha com motor de 40 HP, transporte usado por Bruno Pereira e Dom Phillips na viagem, que começou no dia 3 de junho, ainda está sendo procurada. Segundo a polícia, as buscas contam, inclusive, com o apoio dos indígenas da região e dos integrantes da Univaja. É a primeira vez que a instituição formada por indígenas é citada pela polícia. Os indígenas iniciaram as buscas ainda no dia 5, quando Dom e Bruno foram dados como desaparecidos. Eles foram vistos pela última vez na comunidade São Rafael, que fica distante 1 hora e meia de viagem de lancha da sede de Atalaia do Norte.
Em Brasília, o Instituto Nacional de Criminalística (INC) da PF faz a perícia nos restos mortais encontrados na região de mata densa. Nesta sexta-feira, fontes da PF informaram que o exame de arcada dentária confirmou que se trata de Dom Phillips. Quanto às amostras de sangue coletadas no barco de “Pelado”, os peritos excluíram a possibilidade de serem do jornalista inglês. “A possibilidade de ser originada de Bruno restou inconclusiva, sendo necessária a realização de exames complementares”, diz a PF. “Quanto às vísceras encontradas no rio, não foi detectado DNA humano.”
Os peritos do INC também analisam cartuchos de arma de fogo e um remo, que foram apreendidos em Atalaia do Norte.
Nesta sábado (18), o Instituto Nacional de Criminalística (INC) anunciou que os restos mortais de Bruno Pereira foram confirmados com base no exame de Odontologia Legal (arcada dentária).
O exame médico-legal, realizado pelos peritos da PF, indica que a morte de Dom Phillips “foi causada por traumatismo toracoabdominal por disparo de arma de fogo com munição típica de caça, com múltiplos balins, ocasionando lesões principalmente sediadas na região abdominal e torácica (1 tiro)”.
Bruno Pereira sofreu traumatismo toracoabdominal e craniano “por disparos de arma de fogo com munição típica de caça, com múltiplos balins, que ocasionaram lesões sediadas no tórax/abdômen (2 tiros) e face/crânio (1tiro)”. A perícia continua analisando a distância em que os disparando aconteceram.
A Polícia Federal informou, também neste sábado, que o pescador Jefferson Lima da Silva, chamado de “Pelado da Dinha”, dado como foragido, se entregou na Delegacia de Polícia de Atalaia do Norte, onde estão presos o “Pelado” e o “Dos Santos”. Uma quarta pessoa é acusado, segundo a PF.
Possível vingança
Amarildo de Oliveira, o Pelado, em cena de documentário da Al Jazeera, em janeiro de 2022 Pessoas ouvidas pela Amazônia Real ao longo das apurações apontam, de fato, para um antigo conflito entre Bruno Pereira e “Pelado”. Isso porque Bruno, durante o trabalho de fiscalização que realizava, primeiro enquanto coordenador da Funai na região, depois como assessor da Univaja, trabalhando diretamente com a EVU, já havia apreendido embarcações do pescador e dado a ele vários avisos sobre a proibição da atividade de pesca de pirarucu e tracajás na região. Em um documentário para a Al Jazeera, imagens mostram Bruno abordando uma embarcação de Pelado.
Reforça essa versão de vingança pessoal o fato de, mais ou menos um mês atrás, a embarcação de Bruno Pereira ter sido atacada a tiros próximo da comunidade São Rafael. Estavam apenas ele e um indígena da EVU, conforme fonte ouvida pela Amazônia Real .
Outras fontes apontam o envolvimento de “Pelado” e de sua família com o narcotráfico, a partir do financiamento de narcotraficantes às atividades ilegais de pesca desempenhadas na região. A PF ainda não confirma esta tese, mas na coletiva à imprensa, no último dia 15, o delegado Eduardo Alexandre Fontes fez questão de ressaltar o pano de fundo do Vale do Javari.
“Ali não é uma área isolada, é um local extremamente difícil, uma região que faz fronteira, 1.200 quilômetros com o Peru, segundo maior produtor de cocaína do mundo, todos sabem, a calha do (rio) Solimões é utilizada para transporte dessa droga. Sabemos que nessa região temos dissidentes das Farcs [Forças Armadas Revolucionárias Colombianas], são pessoas extremamente perigosas, extremamente violentas, que acabam subjugando ribeirinhos e indígenas, obrigando-os a plantar coca, sob pena de serem mortos.A PF já realizou diversos trabalhos assim com o Peru desde 2009. Eu trabalhei aqui de 2010 a 2012, e comandava todas as operações de Estado”, lembrou o superintendente.
Segundo levantou a Amazônia Real , os narcotraficantes são provedores de recursos aos pescadores, fornecendo-lhes combustível, motores, embarcações, malhadeiras e até recursos em dinheiro para abastecer as famílias dos pescadores que saem rio acima atrás dos pescados. O “aviamento” dos recursos acontece mediante acordo prévio de pagamento, com juros, do valor provido somado a uma parte considerável da produção (cerca de 60%). Sem condições de armazenar os animais caçados nas pescarias, e sem segurança de terem toda a produção absorvida pelo mercado interno da região, os pescadores acabam vendendo o restante ao próprio “patrão”, que define o preço aplicado sobre a mercadoria.
Ataques em abril
Rio Itacoaí no Vale do Javari (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real) Em ao menos cinco ofícios enviados, desde que a EVU entrou em operação, no início de 2022, há inúmeros relatos de invasões, caça e pesca ilegal e ataques a tiro na TI Vale do Javari.
Um dos mais graves aconteceu em 2 de abril,quando a equipe da EVU foi atacada a tiros sete vezes pelos infratores. “No início da noite, ao retornar de um seus pontos de apoio do Lago Xaburu, os integrantes da EVU se deparam com três pescadores com camisas no rosto se evadindo da terra indígena. (…) Os infratores reagem atirando sete vezes com espingarda contra a equipe da EVU, que recua ao ver eles adentrando no igapó na margem esquerda do Itacoaí”, diz trecho do ofício 29, com data de 12 de abril de 2022. O documento foi enviado para a para a Coordenação Regional da Funai e à Força de Segurança Pública em Tabatinga.
O documento da Univaja cita alguns dos infratores envolvidos na invasãoo do território indígena, mas apenas com seus apelidos, tais como Beré, Jane, Caçula e Patola. Este último teria sido servidor da Funai, hoje aposentado.
A Amazônia Real falou com um dos indígenas que fez parte da equipe da EVU atacada a tiros em 2 de abril. “Foi num sábado, por volta de 18 horas. A gente se deparou com três infratores, mas não soubemos quem são porque eles estavam com a cabeça coberta. Quando chegamos nas uranas (como os indígenas do Vale do Javari referem-se à vegetação à beira da praia), eles começaram a atirar em nós. Fomos então para a Base da Funai no rio Itacoaí, mas nos disseram lá que não podiam fazer nada porque era noite e muito perigoso. Não nos deram nenhum apoio”, disse.
Segundo a fonte, os criminosos possuem pontos estratégicos no rio Itacoaí, onde costumam entrar sem serem identificados e podem facilmente entrar no território indígena para pescar pirarucu e caçar tracajás e carne de caça. A de anta é uma das mais cobiçadas.
“Um mês antes (de morrer), o Bruno também já havia sido atacado a tiros quando passou em frente da comunidade São Rafael. Estava ele e um indígena vigilante da EVU. Estavam subindo para a base. Ele sofreu esse atentado. Possivelmente pelo mesmo ‘Pelado’”, disse.
A fonte afirma ter certeza de que há mais pessoas envolvidas na morte de Bruno e Dom e que há um nome ligado ao tráfico de drogas no comando dos assassinatos. “Querendo ou não, existe um mandante. As coisas são muito bem feitas. A gente tira como se deu a morte. Pelo que conhecemos da região, foi mais de uma pessoa que matou o Bruno, não apenas o ‘Pelado’. Foi tão bem feito que os restos mortais dele estavam em uma cova coberta de madeira e folhas de árvore. E ainda jogaram uma árvore em cima. Não deixaram apenas o monte de barro. Por isso que a gente não iria encontrar”, disse a fonte.
Para ele, o assassinato já vinha sendo planejado. “Matando o Bruno, achavam que o movimento de fiscalização iria se acabar. Eles imaginavam dessa forma. Mas a tendência é ficar mais forte.” (Colaborou Kátia Brasil)
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Restos mortais de Dom e Bruno chegaram em Brasília (Foto: Agência Brasil) Apoiar? Creative Commons
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