FÁTIMA GUEDES
Com o toque dos dedos/A Amazônia mística de Dona Nega Parteira/É o berço das mulheres que benzem”. Sebastião Jr. e Edivander Batista.
Maria de Souza Rodrigues Lisboa, Dona Nega Parteira, nasceu aos quatro dias do mês de junho de 1908, em Letícia (Colômbia). Por conta da procedência e dos fortes traços latinos, muitos a chamavam Nega Peruana, tratamento que rejeitava. Tornara-se parintinense não apenas pelos anos aqui vividos, mas pelas grandes contribuições silenciosas prestadas à Saúde local.
Maria de Souza Rodrigues Lisboa, Dona Nega Parteira (Foto arquivo pessoal)
Apesar de ter acompanhado mais de mil partos e ter colaborado com um dos primeiros diretores do antigo Hospital da Fundação SESP (Serviço Especial de Saúde Pública), em Parintins, Dr. Jofre Cohen, na realização de outros tantos, Dona Nega passou despercebida entre aqueles e aquelas que são contemplados com os títulos de cidadania parintinense.
Casara e ficara viúva quatro vezes. Seu último casamento com o parintinense Rossi Jesus dos Santos realizou-se aos setenta anos, após trinta anos de viuvez.
Questionada sobre a necessidade de manter-se casada, mesmo em idade avançada, Dona Nega justificava que não gostava da solidão, sentia necessidade de “um companheiro, de um amigo para compartilhar sentimentos, ideias, tristezas, alegrias e o que viesse ”.
Dos quatro casamentos, tivera apenas um filho que morrera ainda jovem, no entanto, cuidou de dezoito crianças, filhos de mulheres as quais assistia em sua casa e sem as condições necessárias para criá-los. Dentre eles, Rita de Souza Coelho, parintinense, hoje, com mais de 40 anos, residente na Rua Armando Prado, nesta cidade; quem nos concedeu entrevista para resgatar a memória da Parteira.
Além de parteira, Dona Nega benzia, costurava rasgaduras, consertava desmintiduras e preparava garrafadas para distúrbios do aparelho genital feminino, inclusive para estimular a reprodução, em casos de esterilidade.
Aos 83 anos, por conta das limitações físicas, próprias da idade, deixou de assistir a partos, embora continuasse benzendo e preparando suas poderosas garrafadas.
A cunhada de seu último casamento, Maria do Carmo Reis, conhecida por Camé, já octogenária, parintinense, confirma as informações e, como testemunho, cita as duas filhas Ana Maria Reis e Denise Reis de Oliveira, ambas, hoje, com mais de 50 anos, nasceram naquela unidade hospitalar sob a assistência de Dona Nega.
Camé refere-se à cunhada com respeito e admiração. Relata o partejamento do ex-prefeito de Parintins, Carlos Alberto Silva, o Carlinho da Carbrás e, por conta do fato, este lhe dispensava um carinho filial. Dona Nega também foi referendada em toadas pelos Bois Bumbás Garantido e Caprichoso, durante o Festival Folclórico de Parintins.
Em meio à conversa, Rita ainda nos informou que Dona Nega, possuía uma saúde admirável. Cuidava-se com fórmulas naturais por ela preparadas. Caminhava bastante; geralmente, passava o dia visitando “paridas”, levando-lhes apoio (até material), atenção e as orientações necessárias para cumprirem o resguardo.
Em 2001, com 93 anos, em perfeita lucidez, Dona Nega resolveu descansar para sempre. Na noite daquele dia, repousara a cabeça sobre o colo de Rita, queixando-se de indisposição. E com a serenidade, própria daqueles e daquelas que construíram uma história em benefício da solidariedade humana, o coração repousou em paz. Com certeza, há muito que investigar sobre os conhecimentos e métodos naturais de cura usados por Dona Nega Parteira.
Por fim, o tempo das possibilidades constitui um desafio político em direção a Utopia em construção. É imprescindível que nossa militância política comece por interferir sobre os abismos produzidos entre os saberes, o que reafirmamos na contribuição de Leitão (2007, p.10), “Reduzir a distância entre o horizonte letrado e o oral é uma tarefa urgente da cidadania neste país”.
De nosso Cóio , teimoseamos insistentemente pela revitalização dessa riqueza silenciada assim como de todas as contribuições omitidas e sepultadas na indiferença dos espaços institucionais.
Notas:
Garrafadas – Infusões de ervas, raízes, cascas ou sementes em vinho tinto ou bebida similar.
Cóio – Do caboquês parintinense: esconderijo, refúgio, toca, etc.
Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã e Militante da Marcha Mundial das Mulheres.
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