RENAN ALBUQUERQUE
Um tema que atualmente merece reflexão é a questão das barragens no Brasil. Não somente considerando o acidente em Minas Gerais e outras catástrofes não menos associadas à usinas hidrelétricas e projetos de mineração, mas também tomando como perspectiva a Amazônia Central, e referenciando as histórias da Usina de Balbina e da Mineração do Pitinga, localizadas no Amazonas. São dois empreendimentos construídos no governo militar e que geraram impactos na alimentação nativa das populações do entorno de Presidente Figueiredo, a 112 km de Manaus. E aí estão incluídos problemas a índios Waimiri-Atroari e a colonos desses ambientes, que se serviam para preencherem suas mesas da caça, além, é claro, do pescado e dos frutos coletados.
A caça de animais silvestres para subsistência, na Amazônia, é importante na obtenção de proteína alternativa ao pescado, que é, disparado, o principal alimento das pessoas de um modo geral. A falta desses animais, portanto, tende a gerar déficit nutricional aos amazônidas. Para se ter noção da ordem de grandeza das populações de animais silvestres afetadas em grandes barragens que alagam florestas virgens, como foi o caso de Balbina, notem-se os números astronômicos da operação de resgate em Tucuruí (PA), cuja área alagada é similar à de Balbina.
Naquela ocasião – pelos idos da década de 1970 – foram resgatados, pela operação Curupira, cerca de 280 mil animais, entre os quais 28,7 mil preguiças, 11,9 preguiças reais, 9,7 mil tatus, 9,3 mil porcos-espinho, 5,8 mil cotias, 3,7 mil tamanduás-mirim, 19,5 mil macacos-guariba, 2,5 mil macacos-prego, 48,6 mil jabutis e 20,9 mil iguanas, entre outros. Em Balbina, na década de 1980, menos de 10% desse montante foi resgatado com vida. Foram 26 mil animais, 80% a montante, e 20% a jusante, e não há registro específico por espécies, o que demonstra falta de planejamento (Decreto-lei n° 086/2002, p. 59).
Daí que, utilizando a biomassa total dos mamíferos resgatados em Tucuruí e dividindo-a pela área alagada, obtém-se um valor de aproximadamente 150 kg de mamíferos por km2, valor este muitas vezes menor do que o calculado para outras florestas neotropicais. Portanto, mesmo considerando os números extraordinários da Operação Curupira, é muito provável que apenas uma parcela dos mamíferos da área de Tucuruí tenha sido resgatada. Se considerarmos os demais animais, vertebrados ou invertebrados, as perdas podem ter sido gigantescas.
Em Balbina, o número de animais capturados na operação de resgate foi dez vezes menor do que em Tucuruí, não necessariamente porque lá houvesse menos animais, mas sim porque as dificuldades de se locomover em barco em um lago com as características de Balbina foram muito grandes, e o governo federal não se interessou em disponibilizar recursos para possibilitar o trabalho da melhor maneira.
Com a implantação da barragem, o modelo de subsistência e geração de renda, então efetivado pelos moradores por meio da pesca e colheita de itens agrícolas, foi afetado tanto a jusante quanto a montante. A montante, a redução da densidade de peixes ocorreu por conta da drástica queda do nível de oxigenação da água. O plantio foi modificado porque as comunidades que mantinham suas relações de trabalho a partir de meios artesanais foram obrigadas a se adequar ao novo ethos dominante: o tempo da colheita mudou, o espaço para a disposição das culturas foi alterado, e os meios de transporte para os produtos tiveram de ser adaptados à viabilidade lacustre dos povos.
A jusante, o que se viu durante os dois primeiros anos de funcionamento da usina, 1989 e 1990, foi um leito de rio que apenas serviu, sobretudo, como escoadouro de peixes mortos. Foi perceptível o desarranjo das áreas produtivas e uma desregulamentação na organização social das comunidades que estão distribuídas nos quilômetros de ramal da Morena, ao largo do represado Rio Uatumã. Atualmente, desocupações compulsórias desses territórios por imperícia no trato social com os atingidos por barragem não são raras. Além disso, situação de despertencimento à terra, por parte dos atingidos pela barragem tem sido exacerbada, por causa da manutenção da irregularidade nas escrituras de posse dos terrenos historicamente ocupados pelos ribeirinhos por causa de entraves burocráticos. O trabalho deveria ter sido realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no ato da reterritorialização, em 1989, mas houve controvérsias nesse sentido.
Por fim, cabe supor que a não identificação dos atingidos por barragens e ações de mineradoras e de seus interesses, histórias e culturas é uma forma, por parte dos investidores, de tomar como inaptas e inoperantes as populações ribeirinhas. Não houve mortes noticiadas em Balbina pela grande mídia, mas é impossível deixar de pensar que a tragédia foi menor, que tem sido menor.
A fotografia do lago de Balbina que ilustra esse artigo é do banco de dados Wikimedia.
Renan Albuquerque é professor doutor do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos e do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
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